14.10.07

Luz

No dia em que eu nasci
minha mãe não estava lá.
Era Outono e chovia.
Toda a gente sabe que o Outono e a chuva
fazem cair nas almas uma folha de tristeza
que se pega, molhada, ao coração.
Eu não era excepção. Estava triste.
Lá fora, os carros descuidados
molhavam quem passava no passeio;
um cão com olhar taciturno
abrigava-se debaixo de um telheiro;
o cauteleiro adiava a sorte no fundo da sacola,
enterrava o chapéu na cabeça,
e seguia para casa, onde não chovia menos;
um estudante de capa corria para o autocarro
que arrancava, indiferente e apressado,
deixando um adeus de fumo e cheiro a travões
que se misturava com a chuva;
as meninas do liceu, de meias encharcadas,
corriam aos gritinhos para o aconchego maternal
de um centro comercial;
os amantes despediam-se em segredo
com um beijo molhado debaixo do guarda-chuva;
a badalada de um sino longínquo
anunciava as seis horas da tarde.

Foi então que eu senti um princípio de luz
a crescer-me nos braços,
a iluminar a cidade,
a subir as paredes cinzentas do quarto,
a erguer-me a fronte
e a tornar-se mais forte
contra a força da noite,
e a abrir-me os olhos
e o pensamento,
e a fazer-me ouvir as palavras no vento
que me diziam que era tempo,
era tempo de nascer.
Da tristeza fiz paixão,
da submissão rebeldia,
e nasci. Cheio de ambição
de viver e de chorar.
Era Outono e chovia.

5 Comentários:

Às 15 de outubro de 2007 às 21:30 , Anonymous Anónimo disse...

Inspirado por "Quando as nuvens se dissiparem"?

Independentemente disso, still great.

Aquele Abraço

 
Às 15 de outubro de 2007 às 23:04 , Blogger Amândio Sereno disse...

Não, pá (difo fan). Já foi escrito há mais de um ano. Foi só tirar da gaveta.

 
Às 17 de outubro de 2007 às 21:43 , Blogger Helder Ribeiro disse...

Tambem nasci neste mês,
Ou devo dizer estação
Olha que está Sol de quando em vez
Basta olharmos com atenção!

 
Às 22 de outubro de 2007 às 10:37 , Anonymous Anónimo disse...

De facto, é normal que no outono chova, assim como também é normal que faça sol.
Já nada normal, encontrar alguém que, como tú, conjugue tão bem as palavras com os sentimentos, deixando transparecer uma inegável sensibilidade e tamanha força de carácter.
Gostei principalmente do "da tristeza fiz paixão, da submisão rebeldia".Viver é isto mesmo. É acolher os sentimentos na sua plenitude, sem temer as lágrimas ou o riso. É das trevas fazer luz e renascer. É, ao final de contas, sermos aquilo que queremos ser.

É isto que distingue os fracos dos fortes.

Parabéns!

Continua a escrever, vou-te seguir atentamente.

 
Às 22 de outubro de 2007 às 23:31 , Blogger Sousa Ribeiro disse...

Digo-te, sem que o consideres. Pelo menos de forma assumida. Segue o poema e concretiza-te.Palavras jogadas assim não menos merecem que o espanto e admiração gerais.Ao fim e ao cabo, é o que falta aos árbitros: profissionaliza-te.

 

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