18.3.10

Súplica

Não partas ainda

Não beijes as pálpebras
das lânguidas ondas
que roubaram a praia
onde o nosso amor amanheceu

Não caminhes ainda
pelos sombrios trilhos do silêncio
onde há sentidos suspensos
nas árvores de espadas

Não devolvas ao céu
a cor dos teus olhos
e fala-me de novo ao ouvido
da velha dor das estrelas

Não me largues os lábios
a secarem-me na boca
e vem afogar-te comigo
no rio do tempo

Não partas ainda
Prolonga o gesto inútil
como um operário da alma

Destapa só mais uma vez
o níveo ombro da esperança
e deixa morrerem-me os dedos
a dobar os teus cabelos

1.2.10

Tesouro

Encontrei um pedaço de tempo
que alguém terá deixado cair,
na berma da estrada.
Uma ínfima parte de tempo
que não me serve para nada.

Apanhei-o por mero impulso
de consciência ambiental
e guardei-o no fundo do bolso
como moeda centesimal.

Mas o tempo é sempre tempo
na sua simplicidade suprema.

Caiu-me a moeda do bolso
(alguém a encontrará?)
sobrou-me este poema.

11.10.08

Diagnóstico

E o médico disse aos meus pais:
- O vosso filho tem um corpo a mais.
De resto, é tão imperfeito
como o comum dos mortais.

Minha mãe suplicou com dor:
- Por favor. Sr. Doutor,
faça alguma coisa por nós...
Dê-lhe ao menos uma voz.

- Bom, o máximo que posso fazer
é administrar-lhe uma vacina
contra o tédio
e o prazer.
Mas não tenham grande esperança...
Se não resultar, só vejo um remédio:
trocar a criança.

10.10.08

Se

A minha alma é um espelho baço.
Um muro de cansaço
sobre os meus ombros.
E nas minhas mãos
escombros
sonhos vãos.

Pudesse ser um grito na madrugada
rasgando a noite e o quarto
dessa criança assustada,
em vez deste sujo mendigo
que se arrasta
(que persigo)
esfaimado
pelas frias paredes
da cidade.

A minha alma é um quarto
de lua,
é a face crua do morto
no berço final.
Falta-me a força
ou a vontade.
Porquê chorar no funeral?

24.9.08

Tenham paciência

Doem-me os ossos e o ócio.
Tenho febre de nada fazer.
Arde-me os olhos de tanto ver
e de nada querer guardar na memória.

Na cidade faz-se a história (dizem),
trava-se a eterna luta da justiça...
E eu, sentado, a ver o vento passar,
envolto numa manta de preguiça.

Os ombros caídos, as mãos pousadas,
o espírito consumido
por uma incontrolável vontade
de não fazer nada.

Lá fora, ouço cavalos
sobre a chuva,
tilintam espadas,
corre sangue,
estrilam gritos,
corre a chuva,
tilintam gritos,
sangram cavalos,
chovem espadas,
ah...
ardem casas
como eu ardo em febre...

Quando acabarem que me chamem.
Desfraldem uma bandeira,
lancem um URRA de vitória.
Talvez abra uma janela
se me apetecer,
se os meus ossos me deixarem mover
uma mão para acenar aos vencedores.
Também quero guardar uma memória,
um sorriso de criança, que seja.

Mas para isso tenho que descansar os olhos.
Ardem-me de tanto ver.
Toda a gente é a favor da justiça,
mas doem-me tanto os ossos.
Até estes versos me custaram a escrever.
Tenham paciência.
Vou dormir.

9.9.08

O assado

Com que então um poema é um peixe...
Não é, menina Adília?
Diga isto, assim,
à mesa, em família...
É ver raiar nos olhos das avós
a congestão do assado.

Mas dirá o benjamim, por nós:
Então se calhar foi por isso
que Camões não morreu afogado...

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28.8.08

Isto não é um poema

Isto não é um poema.
É um problema
matemático,
um exercício aritmético
para achar o verso "exático"
e patético.

Alguém tem de alimentar rimas pobres.
Alguém tem de sucumbir à batota
e à batuta.

Aqui, lançar uma batata,
ali, pescar uma bota
enxuta.

Com a comida não se brinca.
Com a poesia também não -
dirão os mais saciados.
Mas atenção! Por favor, não confundir
um poema
com um pão.

Ai de quem tentar trincar o poema...
ferrará a própria mão.

Para mim não existe dilema:
este poema é fome de números;
é a árvore frondosa
da raíz-besta-quadrada;
é uma larva pegajosa
a rastejar na equação.

Dois mais dois igual a nada,
noves fora bota pão.

24.7.08

Poema de Verão














Ninguém morre de amor no Verão.
Ninguém se envenena por um flirt.
Nem é próprio de um respeitável defunto
vestir calções e t-shirt.

Em Julho
o sol dissolve o orgulho.
Em Agosto
rei morto rei posto
e em Setembro já falta pouco
para Outubro e Novembro.

E depois há o mar,
o inevitável mar,
esse mar verde de esperança
que balança os olhos e os barcos
no horizonte.

É certo que os teus braços são uma ponte
para o infinito...
A tua pele é de sal, caravelas, maresia...
É claro que nos teus lábios há naufrágios, conquistas, poesia...
Tudo isto é bonito e fica bem,
em papel queimado, recitado
ou até em mensagem SMS.

Mas nem tudo é o que parece.

Não me peças tragédias nem dramas,
grandes clássicos da literatura
universal.
É Verão e o nosso corpo tem escamas.
Vamos só passear no areal.

14.7.08

Poema-lixo

Quero livrar-me deste poema.
Exibi-lo, liricamente,
qual régio ceptro ou diadema,
em um oblíquo funeral.

Quero atirá-lo janela fora,
como lixo na mata seca,
poluindo, incendiando
a minha alma imperial,
enquanto dedilho
com os dedos duros
a minha harpa desafinada.

Quero livrar-me deste poema
e mais nada.

5.7.08

Não acordem o menino

Não acordem o menino
que ele não quer ser acordado.
Se ele acorda estremunhado,
com os braços retesados,
os olhos surdindo do rosto,
fica logo mal disposto.

Coitadinho do menino.
Deixem-no dormir descansado.

Falem baixo, pisem leve.
Não se ouça no telhado
mais que o silêncio branco da neve.

Parem os ponteiros do relógio,
suspendam o tempo, se possível,
que o menino a estas horas
fica muito irascível.
E não há necessidade
de o ver ficar irritado.

Travem as guerras nas ruas
aqueles que não têm cama.

Vejam como é bonito o menino
dormindo o seu sono profundo,
lá longe da luz violenta
com que nos trazem ao mundo.

Aconcheguem o menino,
para que não se esfrie na noite.
E mesmo que o sol já vá alto,
fiquemos só a vê-lo dormir,
a partilhar o nosso ar
num suspiro longo e sossegado.

Coitadinho do menino.
Deixem-no sonhar
acordado.