18.6.07

Traço

(Depois de Carlos Drummond de Andrade)

Há qualquer rasto que fica,
como um traço de avião,
da negra nuvem passageira
que passa no céu do Verão.
Há qualquer palavra que invoca
a débil contradição,
o "sim" que de súbito brota
do teu soletrado "não".

Há qualquer gume de faca
no teu olhar inocente,
como quem dá de presente
a arma com que nos mata.
Há qualquer água que arde
no fogo-fátuo secreto.
A angústia de fim de tarde
na mesa de um café deserto.

Há qualquer rosto distante
nas vitrines, nas paragens,
lagos de outras miragens
nos olhos do caminhante.
Há qualquer bicho que morde
no rubor dos teus lábios severos.
Há desejos brutos e feros
no ócio opulento de um Lorde.

Há qualquer frieza de mármore
na altura das tuas pernas,
lascivas colunas eternas
de um templo profanado.
Há qualquer voz que me fala
neste silêncio dorido.
Há qualquer dor que se cala
no peito do soldado ferido.

Há qualquer golpe de asa
num sonho alado que caia.
Há qualquer seixo da praia
que fica da maré vaza.
Há qualquer sal na ferida
lambida pelo tempo contado.
Há sempre um resto de vida
que vive do corpo enterrado.

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