29.1.08

Metamorfose

A borboleta soçobrou na sobrancelha
Antecipou o sofrimento anunciado
e suicidou-se
silen(ciosamente)

Da noite negra a anódina ninfa
surgiu de súbito sílfide
na aurora arroxeada
bruxuleando luxúria

A lágrima translúcida de crisálida
cristalizou-se no queixo lacustre
e o seu corpo cobriu-se
de cores

Mas repete-se o estremecimento
do corpo delgado e brilhante
no último efémero enlevo
A cor também é sofrimento
e a morte metamorfose

21.1.08

O Medo

Chegou bem devagar
passo a passo, nas folhas
que o Outono derrubou
com um beijo frio

Segredou-me ao ouvido
palavras interditas
e um vento gelado
percorreu o meu corpo

Pegou-me no pulso
sorveu a minha força
bebeu o meu sono
sepultou a minha fome

Ergueu-me no ar
largou-me no chão
bateu-me tão forte
que esqueci o meu nome

Perguntei-lhe: Quem és?
Que me queres, papão?
Ele sorriu e falou:
Foste tu quem me chamou

1.1.08

"Receita de Ano Novo"

"Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre."

Carlos Drummond de Andrade