Tecto Falso
"Quem grita surdamente não pertence à partitura do tempo." António Ramos Rosa
26.2.08
20.2.08
O tempo das palavras
Desço as escadas maquinalmente, com o peso do mundo às costas, os olhos negligentes. Cada degrau de madeira é um pequeno patamar do abismo que me convida a cada passo.
Abro a velha porta da rua, pesada de mais para um fim de dia. O sr. vento, fiel meteorologista, faz questão de me relembrar que Fevereiro não é cortês.
Saio e a porta fecha-se com um estrondo quase bélico, rompendo o tratado de paz que eu assinara com a minha alma, serena e adormecida num canto de mim.
Tenho um encontro marcado com o ponteiro do relógio, é preciso apressar o passo... e as palavras.
As ruas estão quase desertas. Estranhamente desertas. Será que as rádios e as televisões anunciaram alguma catástrofe natural, alguma invasão extraterrestre, algum ataque nuclear que só alguns poucos não ouvissem? Alguns como eu.
As lojas estão fechadas, fechadas para sempre. Em "liquidação total por motivos de apocalipse" - ler-se-ia nos cartazes colocados meio a esmo.
Numa travessa mais escura, um adolescente imberbe hesita o olhar curioso entre a cinzenta montra de um alfarrabista e os brinquedos coloridos de uma sexshop. O mundo vai acabar! Quão difícil pode ser a escolha?
Ah... a escolha. Pois. Quem sou eu para dar conselhos? As palavras. As simples palavras que não disse e que não mais me deixaram respirar. As difíceis palavras que fugiram, que se escoaram como água nas minhas mãos, para regressarem agora, no meu caminho de casa, para me taparem os ouvidos e me turvarem os olhos e me arderem nos lábios.
Sob a luz convalescente dos lampiões, todas as esquinas e recantos me parecem palcos possíveis de crimes hediondos acabados de cometer, ainda a cheirar a sangue e a pólvora.
A calçada suja não consegue acompanhar os meus passos trágicos e apenas um rápido eco me persegue.
Os meus pés caminham energicamente, movidos por uma vontade desconhecida. Mas os meus olhos repõe mobílias, relembram expressões, refazem cenários. Os meus lábios mexem quase imperceptivelmente num ritmo frenético, despejam palavras que repetem, reformulam e repetem até à exaustão, até ao limite da loucura, na esperança imortal de que o tempo volte para trás, regresse ao momento oportuno, ao segundo exacto em que o mundo fazia sentido, em que duas vidas poderiam ter sido diferentes para sempre.
Envolvo as palavras dentro de mim. Como um oleiro meticuloso moldo o seu barro à obra que imaginei, à forma perfeita que nunca passou de ideia. Escolho o tom, a expressão, o timbre, os gestos.... Tudo pensado ao mais ínfimo pormenor, para que nada falhe, agora, dentro de mim, para que nada seja deixado ao acaso, para que nada fique à mercê do meu instinto cobarde.
Repito o processo, vez atrás de vez, até aconchegar a minha alma na tépida incerteza de não saber, por momentos, qual a verdadeira realidade: o que digo ou o que não disse.
Mas de repente, tropeço na bengala de um velho mendigo, sentado num degrau da entrada para o "Bingo", de chinelos nos pés. A engrenagem automática dos meus passos empanca por momentos, mas rapidamente regresso ao caminho. O velho, de dentes cerrados, ainda murmura alguns palavrões que não consegui perceber. "Hoje há marisco grátis".
Mais à frente, um pombo mais incauto arrisca um último voo nocturno por umas raras migalhas.
Um sujeito pálido intercepta-me à porta de um café imundo e pede-me uma moeda para um pão. Mas eu estou atrasado. E não tenho moedas. Gastei-as. Já só tenho palavras.
17.2.08
11.2.08
Espelho de água
A tua alma tem um espelho de água
de um calmo lago, de um destemido mar,
onde eu vou afogar a minha mágoa,
onde eu deixo a minha poesia mergulhar.
A incerteza de quem ama... eu trago-a
sempre acesa no peito, a calcinar,
como fogo infernal, intensa frágua,
que somente se aquieta em teu olhar.
Esses olhos do tom da liberdade,
da cor de uma fresca manhã de Verão,
são poetas que só dizem a verdade,
são crianças a estender-me a mão,
por um doce sorriso, sem maldade,
são a água que me inunda o coração.
5.2.08
Quarto Mundo
No meu quarto não entra luz
Só o escuro seduz
a mente
No meu quarto não entra gente
Há uma dor que me reduz
teimosamente
a pó
No meu quarto
só
No meu quarto onde não durmo
cobrem-me lençóis de fumo
sobre um colchão de aço
que me desperta
o cansaço
No meu quarto tropeço
e volto a cair
Em vão tento sair
pela porta que não existe
do meu triste quarto triste
No meu quarto ouço sussurros
incompreensíveis
de vozes que me vencem
e eu não venço
Desato aos murros
às paredes invisíveis
e morro cansado
de silêncio.