31.5.07

Barro

"Não tenho culpa de nada!
Tivesses a mão fechada
ou aberta de outra maneira..."
Miguel Torga


Não posso ser mais do que isto:
a chaga aberta de um Cristo
que pecou;
o náufrago perdido
na ilha deserta
do mar que o afundou.

Não posso ser o que quero,
nem mesmo quando quero
ser aquilo que sou.
Do princípio ao fim
negarei esse sim,
fugindo de Ti e de mim
sem saber para onde vou.

Não posso caminhar sozinho
e é sozinho que ando,
julgando pelo caminho
que vou para onde mando,
onde não chega a Tua mão,
onde não se ouve o Teu não
e onde intimamente espero
o Teu eterno perdão.

Não posso ser mais do que fraco,
ser um pedaço de caco
do molde que se partiu.
Não posso ser mais do que ingrato
para o ventre que me pariu.

Mas sei que sou homem,
não um rato,
para saber aquilo que sou:
o filho desnaturado,
o barro mal acabado
que a Tua mão moldou.

23.5.07

A encruzilhada

Noite cerrada.
O vento sopra forte na encruzilhada.
As horas pendem como espadas.
Brancas as mãos, despojadas.
Os olhos hesitam na escolha entre os nadas
das estradas.

Vêm-me lembranças vãs de outros caminhos
a que não sei regressar,
de vozes lentas e graves,
de perfumes de flores arrancadas.
A terra firme, o chão sagrado
foge-me dos pés
e o vento impaciente
num sopro irado pergunta:
Quem és?

Inerte, procuro o horizonte da estrada,
ou talvez um improvável equívoco da sorte,
ou talvez a revelação interdita do futuro,
algo que exorte o meu ânimo perplexo,
enquanto o afiado punhal do destino,
expectante, cintila no escuro,
atento ao meu mínimo reflexo.

16.5.07

Quem conta um conto...

Um conto. Três autores. Um deles inicia a história e os outros dois propõem, cada um, livremente, um final para o dito conto. Os estilos misturam-se mas mantêm a identidade. Os desenlaces assumem a natureza que cada um dos autores lhes quis dar, sem preconceitos, orientações ou sequer sugestões. Um exercício interessante, quanto mais não seja para quem o pratica. Aqui se publica o início da história. Não deixem de ler os finais, diferentes mas igualmente brilhantes, propostos por Vicent Russel (www.despojosintelectuais.blogspot.com) e Diplomata (www.hcpa.blogspot.com).

O Rio

O rio transbordara e corria barrento, tumultuoso, instigado pelas chuvas outonais que caíam há alguns dias. A velha ponte de pedra do lugar de Travassos fora completamente coberta por aquela fúria líquida que arrastava na corrente tudo o que se lhe opusesse.
Por volta das cinco da tarde, o “Ti” David, como era conhecido na aldeia, voltava da lavoura no terreno dos Ferreiras. O céu, por momentos, dera tréguas à terra encharcada, mas o rio, indiferente à piedade divina, persistia na sua corrida infernal.
O Joaquim ainda avisara:
- “Ti” David, durma cá hoje que a ponte está má de se atravessar. Arranja-se aí uma cama… – convidou, solicitamente.
- Ó patrãozinho, não é preciso. Estas pernas nunca me deixaram ficar mal – retorquiu o velho, demonstrando a gratidão que o seu orgulho permitiu.
Era o que faltava. Sabia todas as pedras daquele velho caminho que os pés aprenderam a conhecer desde os primeiros passos. Não era agora aquele ribeiro acanhado - que às primeiras chuvas se exibe arrogantemente - que o ia impedir de repousar os seus sessenta anos na aconchegante solidão da sua casa. Ainda por cima, era véspera do dia de Todos os Santos.
Abeirou-se da ponte submersa que resistia, empedernida, à voracidade das águas. Realmente, nunca vira a corrente tão forte. Olhou, brevemente, para trás a reconsiderar o convite. Não. Era dar parte fraca. Ajeitou o chapéu, arregaçou as calças e, pelo sim pelo não, pegou num tronco comprido que o rio rejeitara, para ajudar ao equilíbrio.
- Vamos lá! – murmurou entredentes, num incentivo corajoso aos seus músculos cansados.

9.5.07

Soneto do Instante









(foto gentilmente cedida por Helder Ribeiro - www.helderribeiro.blogspot.com)

Uma onda branca beija a areia
e o mundo muda sem aviso.
No vento solta-se a Ideia.
Faz-se lágrima o sorriso.

Ao fundo do mar se incendeia
o corpo azul do céu liso.
O Tempo impaciente passeia
pelos caminhos que eu piso.

A noite aporta devagar
na sua nau velha e cansada.
Do breve instante passado,

tão breve como as ondas do mar,
fica apenas a pegada
de um adeus inseperado.

4.5.07

Entardecer

Cobre-me com um lençol branco
que eu quero morrer de amor.

Quero voltar ao teu quente, mãe,
quero tornar a ser flor,
frágil para ser feliz
e em cada pétala derramar uma lágrima
só porque hoje não sonhei.

Perdoa-me se os meus olhos
não sabem beijar o mundo como tu mo deste.

Perdoa a minha voz estranha, rouca e agreste.

Perdoa-me se eu já não choro com medo do escuro,
mas é tudo tão confuso,
há tanta luz, tanta gente,
e o ar é tão diferente e frio.

Não há tempo para o medo.

Eu não sei partilhar a tua vida, mãe,
a vida que partilhaste comigo.
Não sei partilhar a tua ferida
que me ficou para sempre beijada no umbigo.

Por cada passo que dei
teus lábios sussurraram um sorriso.
Cada palavra que não pensei
foi dita com a inocente inexactidão
que tu sempre acariciaste.

Mas agora as palavras fazem eco dentro de mim.
E eles querem sempre que eu diga "sim".

Não, mãe.
Não aguento mais mentir liberdade.
Não suporto mais dizer a verdade
de um homem inteligente.

Eu hoje quero morrer de amor.
Nu, sozinho e completo.
Por favor, mãe,
deixa-me voltar ao teu ventre.