18.3.08

Convite

Arruma a minha dor perto da tua,
no terraço mais alto da alma,
onde os dias se esvaiam na calma,
onde as noites suportem a lua.

E ainda aí, nesse lugar protegido,
seja sempre a tua dor mais pequena,
para que a minha dor valha a pena
e lamentá-la não perca o sentido.

Não te amo mais do que posso.
O amor é só um convite
para conter da razão no limite
o medo de viver o que é nosso.

Por isso, guarda por favor no teu peito
este pedaço de sombra empedrada,
esta quase memória de um nada
que alimento por prazer ou defeito.

12.3.08

O acordeonista

Quem sabe dizer de cor
a cor do acordeão?
O acordeonista cego
não

Mas sabe de cor o som
das notas de solidão
que lhe desfilam
na mão

As notas sem cor
diáfanas, naturais
que se ouvem além do torpor
dos sentidos que temos
a mais

Além dos olhos
dissonantes
que perdem por distracção
a harmonia
dos instantes

Além das mãos subornadas
Dos perfumes de traição
Das bocas empanturradas
de razão

Mas o velho acordeonista
pintor de improvisação
vê o cortejo do mundo
pelos olhos do acordeão

Cego na luz
E lúcido
na escuridão

3.3.08

Seco

Estou seco
Vazio
como um saco
Duro
como um soco
Fundo
como um sulco

Nem promessa de chuva
Nem gota de água

Neste deserto de dor
Já nada me morre
Já nada me sinto
Sou rude e áspero
como um travo de absinto

Sou a fatal bala silente
no peito condecorado
e fumegante
do presidente

Sou o derradeiro punhado de terra
atirado sobre um caixão
onde as flores e as lágrimas
secarão.

Sou o velho corvo da aldeia
de feridas fendidas no rosto
voando sobre a inculta seara
que um pequeno vidro incendeia
sob o sol agreste de Agosto

Sou o rio seco
e o alto muro
e o fosso escuro
de um castelo altivo.
Sou soco e duro.
Estou seco
e vivo.