28.4.08

Gato preto









Gato preto gato preto
não sigo teu negro repto
o secreto mau agoiro
dos teus bigodes de oiro
o penetrante presságio
dos teus olhos desleais
como brilho de punhais

Gato preto gato luto
contra o esquivo insecto
contra o rato arguto
que se entoca esfomeado
no buraco mais recôndito
do destino
Oh deliquescente felino

Gato preto gato liso
renego o meu pardo medo
e escuto o lascivo riso
sobre os telhados das casas
de onde em noites de lua nova
te lanças enraivecido
num negro voo sem asas

21.4.08

Balada da Florbela (atropelamento e fuga)

Florbela, bela flor
que desabrochava poesia,
na flor dos seus quinze anos,
tão pouco da vida sabia
como dos seus desenganos.
Inocente, deslumbrada,
a bela moçoila escrevia,
em rima interpolada
e redondilha menor,
uns versinhos inseguros
que choravam por amor.
Os olhos verdes, tão puros
como duas bolas de sabão,
flutuavam pela vida
ao sopro do seu coração,
e Florbela, iludida
pela eloquência da paixão,
escrevia tudo o que sentia
em busca de libertação.

Tinha nome de poetisa,
devia sofrer calada,
chorar lágrimas de tinta -
a adolescente pensava.
E mesmo não sendo amada
(que mais uma mulher precisa?)
o que a vida lhe não dava
a poesia que nos minta.
Florbela escrevia,
escrevia e não chorava.
Florbela sorria,
chorava mas ninguém via.

Um dia, ao voltar para casa
pela mesma velha estrada,
com a sua tristeza de asa
de andorinha apedrejada,
pensando verter no diário
mais uma paixão dezasada -
oh infortúnio rodoviário -
a moça foi atropelada.
Florbela, espancada
pela frente de um camião,
ficou estendida na estrada
com os seus versos na mão.

8.4.08

A última flor

Breve instante de doçura,
breve trecho de surpresa,
e de súbito a loucura,
e novamente a tristeza.

Nem a lua já murmura,
nem o rio reverbera,
o vento na noite escura,
o luar de primavera.

No pranto lento da chuva,
no primeiro raio da aurora,
nenhuma outra dor se enluva,
nenhuma saudade se chora.

Em tudo o silêncio perfeito
da morte sem amargura,
para que emurcheça em meu peito
a última flor de ternura.

1.4.08

O copo

A estática segurança
A estética certeza
Da pose nunca se cansa:
Um copo em cima da mesa

O cristal do mais transparente
O pé alto, esguio e elegante
Não fosse copo era gente
Fosse gente era importante

Estará vazio ou repleto?
Será de água ou de vinho?
Irrepreensível objecto-
zinho

Um copo em cima da mesa
Enquanto eu assim o quiser
Na ascética incerteza
de ser outra coisa qualquer.