26.7.07

O Armário



Tenho no quarto um armário
onde guardo o rancor,
em arquivo organizado
por nome, data e motivo:
Casamentos e baptizados
para os quais não fui convidado;
Traições de ex-namoradas;
Cafés mal tirados
por empregados carrancudos;
Amigos que não cumprem horários;
Patrões unhas de fome;
Os putos que roubam as laranjas
do fundo do quintal;
As enfermeiras das injecções de penicilina
na pneumonia dos meus 12 anos;
etc., etc., etc.

Todas as noites, antes de deitar,
releio uma ficha, só para lembrar.
Depois, tomo um chá de tília,
como uma bolacha Maria
e durmo descansado, até ao outro dia.

Sono tranquilo de uma vida segura...
E quando o sol nasce,
tenho sempre para dar
os bons dias suaves,
um aperto de mão,
gentileza e brandura.

Porém, esta noite (acabou-se-me o chá),
assaltou-me um pensamento
que me acordou estremunhado:
"Lembrar amanhã:
tenho de abrir ficha para o Bento,
o meu vizinho do lado."

19.7.07

Escadas Rolantes

Sobe
Desce
E o corpo amorfo aquiesce
O olhar cansado obedece
Sobe
Desce

Desce
Sobe
Ascende o rico
Desce o pobre
Desce
Sobe

Sobe
Desce
O grito apertado que mexe
na garganta snob
Desce
Sobe

Sobe
Desce
O tempo rejuvenesce
e envelhece
o mesmo
Sobe
Desce

Sobe
Desce
Ao piso onde a escuridão cresce
e a luz
morre
Desce
e Sobe

13.7.07

Soneto da Noite Escura












Com um verso de António Gedeão


Quando os olhos se afastam do futuro,
unem-se as mãos para suster o pranto
e ouço, sibilantes, surgir no escuro
o medo, a solidão, a dor, o espanto.

A noite ergue no quarto um alto muro
e encurrala-me na treva, a um canto.
Assustado, dentro de mim procuro
um sonho que me sirva de acalanto.

Mas do abismo se avistará a amplidão,
far-se-ão asas do medo, para voar,
e da noite sairá a face erguida,

Pois no seio da treva e da escuridão,
eu sinto ainda mais forte a palpitar
"essa coisa inevitável que é a vida".

5.7.07

Um Jardim

Velhos sentados jogam as cartas
de amor e espadas que viveram.
As árvores carecas e fartas
de ouvir dizer que já morreram.

Atrás delas, pulgas pagas
saltam de cabeça em cabeça.
Correm três cadelas magras
pela relva seca e espessa.

Dois putos procuram no lixo
o pão nosso de cada dia.
Pardais debicam um bicho
no meio da porcaria.

Meninas de bicicleta
flutuam fora do mundo.
Uma gata mais esperta
à sombra de um vagabundo.