26.11.07

Animal de Estimação

Não passeio pela rua
a minha dócil solidão,
um bicho quase pessoa
que me cativa com um olhar terno
enquanto invento o jantar.

Não dou de beber à dor
um prato quente
deleite,
nem lhe afago o pelo
aveludado, lenitivo,
quando se insinua, languidamente,
nas noites de Inverno,
junto à lareira.

Nunca exibi a minha mágoa
para além da luz desta água
que quatro paredes de vidro
impedem de jorrar
e de me deixar desoxigenado,
estiolando em convulsão.

Nem fui eu quem cortou as asas
e prendeu entre grades de ferro
e memórias de telhados de casas
o pássaro possível
de um coração racional.

Não passeio pela rua
a minha dócil solidão
que nunca mordeu com vontade
as canelas deste não.
O homem é um animal
de estimação.

19.11.07

Espelho

"Eu to juro, menina, tenho visto
coisas terríveis - mas jamais vi coisa
mais feroz do que um riso de criança."

Antero de Quental


Queria dizer-te que a vida é enorme
mas os teus olhos não me deixam mentir.
E depois há a filosofia muda das borboletas,
a poesia colorida das suas asas em fase terminal;
há um mundo teimoso que não gira sozinho;
no meu espelho quadrado,
há um sujo menino abandonado
que não pode ir brincar contigo.

E depois há o sofrimento horizontal dos ascetas,
há uma palavra errada em cada página do jornal,
há os bons-dias inúteis do inútil vizinho,
há uma falta de sonhos nas estrelas
que não persigo.

Corre, salta, ri, grita,
suja as tuas brancas mãos
nessa terra preta onde eu dormia.
Se a verdade é liberdade
eu quero agrilhoar-me à fantasia.

E se amanhã te vires chorar,
lembra-te, furiosamente,
de ser criança
para sempre.

4.11.07

O Violino

Subo a pulso a corda do infinito
de um violino de negro marfim,
mas logo caio frustrado num grito
que é rouco de nada e de mim.

Os meus dias de pedra morna e cinzenta
são beirais no centro de um sismo.
Ah, quem me dera morrer em magenta,
dar um passo azul no abismo,

e no silêncio sem fim do infinito,
na solidão ao sul do destino,
nem sequer ter pulmão para o grito,
e só ter asas, como o violino.